A diplomacia de Guerra da Rússia na história

Logo nos primeiros dias após o início da invasão russa à Ucrânia, Donald Trump, ao comentar os acontecimentos, declarou que a manobra diplomática feita pelo Presidente russo fora “genial”. Não que Trump concordasse com a invasão, como alguns tentaram dar esta impressão, mas seu comentário foi baseado no nó diplomático aplicado por Putin.

Vladimir Putin fomentou a criação de duas repúblicas independentes no leste da Ucrânia, Lugansk e Donetsk, reconheceu a criação dos Estados e no ato de reconhecimento praticamente anexou os dois novos países integrando o sistema de infraestrutura, energia, comunicações e até mesmo a moeda. Em suma, os russos estavam criando dois estados pré-anexados dentro da Ucrânia da “noite para o dia”.

Analisando mais a fundo o histórico russo, percebemos que Putin não fora de fato genial com uma ideia original no campo diplomático. Estava na verdade aplicando uma cultura diplomática de Guerra dos Russos. Vejamos alguns exemplos a seguir.

 

A tomada da Criméia por Catarina II

No final do século XVIII, a atual Ucrânia estava dividida em alguns territórios, a parte leste fazia parte do Império Polonês e na região sul existia o Canato da Criméia, Estado vassalo do Império Otomano. O Canato era uma herança das expansões mongóis do século XIII e XIV. Importante ressaltar que uma característica dos Khans era a liberdade religiosa, política governamental adotada por Kublai Khan, neto de Gengis Khan, em sua dominação de partes da atual China.

No Canato da Criméia existia em maioria: cristãos, judeus e muçulmanos. Neste período, a Czarina Catarina II tinha pretensões territoriais na Criméia e utilizou como pretexto diplomático que os cristãos da região estavam sendo oprimidos e escravizados, precisando desta forma serem salvos pela Rússia Cristã Ortodoxa. O Império Russo tradicionalmente utilizava a narrativa abolicionista para justificar a expansão de seu império. O poeta e figura importante do iluminismo Russo Mikhail Kheraskov escreveu à época:

“Temos que ir lá

Por causa das dificuldades de nossos parentes,

Tendo a mesma lei [religião] que nós,

 Eles estão em cadeias pesadas lá”

Ao final da invasão e derrubada do governo local em 1774, os russos declararam que os cristãos estavam livres e poderiam migrar para a Rússia. Porém os cristãos não sofriam nenhum tido de opressão local e não queriam abandonar suas terras e ir para a Rússia.

Para manter a narrativa, Catarina II solicitou a seu leal oficial militar Alexander Surkov que começasse a expulsar cristãos da Criméia rumo à Rússia em 1778, levando a uma migração em massa forçada até o ano de 1786. Neste período, muitos cristãos fugiram da região para evitar a deportação forçada da Rússia, um dos principais assentamentos de cristão foragidos acabou tornando-se a cidade que hoje conhecemos como Mariupol.

 

As justificativas para a Invasão da Polônia

Após a assinatura do pacto de não agressão com a Alemanha Nazista, o famoso Ribbentrop-Molotov de 1939, continha cláusulas secretas de divisão de territórios do leste-europeu e países bálticos. No caso da Polônia, ficara acordado que o país seria dividido ao meio pelas duas potências. Assim, Stálin e o regime comunista precisavam de uma justificativa diplomática para executar a invasão.

Iniciou-se uma campanha de forte propaganda em toda a União Soviética que dava conta que os Poloneses estavam sendo oprimidos e que precisavam serem salvos pelos soviéticos. No ano de 1939, o embaixador soviético em Londres, Ivan Maisky, registrou em seu diário que a invasão seria um gesto filantrópico, motivado pelo desejo do exército vermelho de

“proteger a vida e as propriedades da população [polonesa]”

Na mesma época em Moscou, Molotov concordou dizendo que se tratava de uma operação de resgate para proteger os “irmãos de sangue” do povo soviético. Mas a narrativa fazia parte de uma desculpa pragmática. Dias antes da invasão, o próprio Molotov admitira para o embaixador alemão em Moscou, que estava a par do pacto secreto, que tudo era um “pretexto” para a invasão do leste polonês.

Assim, os soldados russos embarcaram em uma missão de resgate de um povo oprimido e que precisavam de seu heroísmo. Quando a invasão à Polônia teve início, a realidade apresentada era completamente oposta. Na verdade, os Soviéticos ficaram chocados com o que presenciavam. O oficial da força área Russa Georgy Dragunov relatou:

“os poloneses não precisavam de qualquer tipo de de ajuda [e] que aquilo mais parecia uma ocupação.”

 

“Disseram para nós que o país estava em crise, que a Polônia estava se desintegrando e que nós íamos estabelecer uma nova ordem.”

 

As justificativas para a invasão da Finlândia

Com o sucesso da operação de invasão da Polônia, Stalin voltou seus olhos para a Finlândia. Sua intenção inicial era a de proteger a cidade de Leningrado (atual São Petersburgo) que naquela época contava com 3,5 milhões de habitantes e estava geograficamente vulnerável a um ataque vindo pelo mar do norte.

Stalin inicia então negociações com o governo da Finlândia, solicitando uma alteração de fronteiras, onde ela seria empurrada 60 kilômetros para dentro da Finlândia, aumentando a zona de proteção da cidade. Os soviéticos também desejavam que os finlandeses desistissem de outro território que incluía várias ilhas no golfo da Finlândia. Em compensação, Stálin ofereceu ceder algum território na Carélia Oriental. O território em si era equivalente a quase o dobro do que os finlandeses estavam cedendo, porém estrategicamente e economicamente de valor inexpressivo.

Após um extenso período de negociações, a Finlândia decidiu não ceder aos pedidos de Stalin. Iniciando assim os preparativos para uma ofensiva militar contra o país nórdico.

O primeiro passo foi transformar o comunista finlandês Otto Kuusinen, em chefe de Estado de uma nova Finlândia “democrática”, um país que ainda não existia e que Stálin planejava criar. No dia 01 de dezembro de 1940, um dia após o início da invasão do exército vermelho à Finlândia, o jornal Pravda publicou que a União Soviética estava agindo porque a nova República Democrática da Finlândia, liderada por Otto Kuusinen, precisava de ajuda para libertar o país do atual regime. Desta forma, não era necessária uma declaração de guerra à Finlândia, tendo em vista que o governo legítimo de Kuusinen, aos olhos da Rússia, havia pedido ajuda. Neste mesmo período Stalin declarou:

“Não temos nenhum desejo pelo território da Finlândia. Mas a Finlândia deve ser um Estado amigável com a União Soviética.”

Stálin e o governo soviético não contavam com a resistência do povo Finlandês que infringiu diversas derrotas ao exército vermelho e expôs o esquema de propaganda de fingir uma “libertação” como uma manobra cínica. Quase nenhum finlandês concordou em aceitar um novo governo “democrático” liderado por Otto Kuusinen. Vale ressaltar que a classe trabalhadora da Finlândia era tradicionalmente socialista.

 

As justificativas para a Invasão da Ucrânia

O Presidente da Federação Russa, Vladimir Putin. Iniciou os avanços contra a Ucrânia ainda no ano de 2014, mais especificamente em 21 de fevereiro daquele ano, um grupo de manifestantes pró Rússia organizou no edifício do Soviete Supremo da Criméia uma manifestação para anunciar o não reconhecimento do novo governo da Ucrânia, estavam sob a alcunha de “Exército de Libertação Popular”.

No dia 26 de fevereiro, os Tártaros – povo natural historicamente da Criméia que sofrera deportações em massa para a Sibéria em 1943 a mando de Stálin e que passaram muitas dificuldades para retornarem à sua terra natal após a morte de Stálin em 1953 – organizaram comício com o objetivo de cercar o edifico do Soviete Supremo e de impedir a aprovação da decisão sobre a anexação da Criméia na Rússia. O embate entre as duas frentes levou à morte duas pessoas.

No dia 27 de fevereiro, dois grupos desconhecidos fortemente armados e com aparato militar, tomaram o prédio do Soviete Supremo e a sede governo da Criméia, barricaram os prédios e içaram bandeiras da Rússia. Demitiram o governo e o parlamento local e nomearam um novo governo pró-russo dirigido por Serguei Aksionov, cidadão com um registro criminal extenso. No mês de março a Rússia continuava a negar que os “homenzinhos de verde”, como ficaram conhecidos localmente, eram enviados de Moscou. O “novo governo” local solicitou ajuda da Rússia para realizar o referendo na península sob ocupação militar que teve o incrível resultado de 96,77% de votos favoráveis a anexação russa.

A Rússia aceitou o “pedido de anexação” por parte dos russos étnicos das Criméia que estariam sofrendo opressão.

Em 2016, um grupo de hackers ucranianos supostamente sediados em Lviv decidiram ajudar o governo ucraniano contra a desinformação russa e através de uma infiltração ao sistema de informação, fóruns e sites de propaganda russos conseguiram invadir os servidores de vários políticos, inclusive aos e-mails de Vladislav Surkov, político próximo à Putin e líder da Duma entre 1999 e 2011. Nestes documentos foram identificados o planejamento explicito da criação de grupos separatistas em Odessa e Kherson, o que acaba dando a entender que também são os possíveis responsáveis pela criação dos grupos separatistas da região do Donbass.

Em 2022, após quase oito anos de conflitos entre os separatistas de Dontesk e Lugansk, O governo da Rússia reconheceu em 21 de fevereiro as duas Repúblicas como estados independentes e tendo como chefes de Estado Denis Pushilin e Leonid Pasechnik respectivamente. No ato de reconhecimento a Rússia ofereceu a integração do sistema de infraestrutura, energia, comunicações e até mesmo a moeda. Além disto, as partes assinaram tratado de defesa militar, onde qualquer um dos três Estados se atacado militarmente, devem prestar apoio militar ao outro.

Desta forma, assim como Stálin o fizera, em 24 de fevereiro Vladimir Putin dá início ao que classifica como operação militar especial, alegando que a Rússia estava agindo porque as novas Repúblicas de Donetsk e Lugansk, precisavam de ajuda para se libertarem da opressão do “regime” ucraniano. Desta forma, não era necessária uma declaração de guerra à Ucrânia, tendo em vista que os governos “legítimos” de Dombass, aos olhos da Rússia, haviam pedido ajuda.

 

Mais do que estratégia

Com alguns episódios tomados como exemplos, podemos perceber que Vladimir Putin não fora um gênio da estratégia diplomática que surpreendeu até mesmo Donald Trump. Na verdade, seu governo está seguindo uma doutrina diplomática de guerra secular, utilizada pelos Czares, ditadores soviéticos e agora o Presidente da Federação Russa. O conflito que envolve a Rússia e a Ucrânia é cercado por diversos motivos e todos eles possuem uma intenção imperialista russa de dominação territorial e para neutralizar toda e qualquer possibilidade de crescimento de seus vizinhos.

 

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Este conteúdo faz parte de um episódio da formação PHVox, clique aqui para assistir.

Um comentário sobre “A diplomacia de Guerra da Rússia na história”

  1. Elcio disse:

    E onde entra o duguin nessa história?

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