Foro de São Paulo e o exército: muito além da Nicarágua

No artigo de hoje, compreenderemos como a notícia de uma simples simulação, pode ser a ponta de um verdadeiro iceberg no continente latino-americano.

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Eclodiu como uma bomba nas redes sociais a notícia de que o exército brasileiro irá realizar exercícios militares com as forças armadas da Nicarágua. A matéria foi publicada pela revista VEJA nesta quinta-feira, 29 de junho de 2023. Ao analisar o conteúdo da matéria, o leitor é informado que o exercício faz parte da “Operação Paraná III” e organizada pela Conferência dos Exércitos Americanos (CEA). O objetivo é simular, em um país fictício e localizado na América do Sul, uma situação de instabilidade política, econômica, social, além de sofrer com catástrofes naturais. Em uma primeira impressão, nada de mais. Porém, precisamos incluir este processo em um grande emaranhado geopolítico.

Quando observamos a estrutura do CEA, notamos que existem diversos países dos mais variados espectros políticos, transmitindo um certo grau de isonomia para as atividades. Porém, o que não está claro, que grande parte destes acordos e organizações de cooperação militares, foram instituídos ainda no período da Guerra Fria, onde os países que compõe a estrutura atual, estavam mais alinhados à zona de influência capitalista (EUA) do que a comunista (União soviética). Atualmente, estes acordos são em grande parte esvaziados, ou melhor dizendo figurativos.

Importante notar, que estas organizações também são utilizadas como uma espécie de verniz para validar novos acordos militares e até mesmo desenvolver novas alianças. Este é o caso do Sistema de Integração Centro-Americana (SICA), onde no mês de abril de 2023 o ditador da Nicarágua, Daniel Ortega, propôs incluir a Rússia como um observador. A solicitação foi realizada durante a visita de Sergey Lavrov na América Latina, que incluiu no roteiro, Venezuela, Cuba e o Brasil. No dia 15 de abril, o ditador Daniel Ortega também expressou a intenção de incluir a China como observadora da organização, dizendo que “a incorporação de Moscou no SICA não pode ser bloqueada, pois é uma decisão que já foi tomada e não pode ser revertida. O que deve ser revertido é a presença de Taiwan no SICA; tem que ser retirado, expulso do SICA, e vamos acolher a China”.

Analistas políticos da América latina apontam que Daniel Ortega crê que pode seguir os passos de Fidel Castro ou Hugo Chávez na região, tornando-se um ator importante na política mundial. Ele também vê uma oportunidade de criar um bloco na região contra os Estados Unidos.

A relação entre Rússia e Nicarágua não é nova, conforme o relatório Alianças Perigosas: Incursões Estratégicas da Rússia na América Latina, publicado no final de dezembro de 2022 pelo Instituto de Estudos Estratégicos Nacionais (INSS) da Universidade de Defesa Nacional dos EUA, o regime de Daniel Ortega e Rosario Murillo usa o software russo System for Operative Investigative Activities (SORM) para espionar na Nicarágua desde 2018. Segundo Jorge Serrano, especialista em segurança e membro da equipe consultiva da Comissão de Inteligência do Congresso do Peru, “Essa tecnologia de controle social faz parte do modus operandi do Kremlin, estendido na América Latina para apoiar os regimes mais nefastos, mas também para expandir e recrutar mais países na região”.

Além deste fato, ainda no ano de 2022, o congresso da Nicarágua, comandado pelos revolucionários sandinistas, garantiram a entrada de soldados, navios e aeronaves russas no país. O motivo alegado foi o apoio das tropas russas em combater ações de narcotráfico na região, uma atividade da qual não existe registro de efetividade ou mesmo notória capacidade do exército de Moscou. Alguns especialistas em segurança consideram que a autorização para as tropas russas entrarem na Nicarágua não tem relação com fins humanitários, como indica a autorização, mas com tarefas de espionagem e coleta de dados de inteligência.

Em entrevista na época, o ex-embaixador dos EUA no Panamá, John Feeley declarou: “Eu acredito que as tropas russas serão usadas para fins de inteligência, para coletar [dados de] inteligência na região. Se os soldados russos vierem à Nicarágua para realizar atividades humanitárias, convido o povo nicaraguense e qualquer observador a ver o que os soldados russos estão fazendo na Ucrânia.”

Neste ponto, quero chamar a atenção do caro leitor para a necessidade de se observar os dados que envolvem a geopolítica em um espectro de conjuntura. É muito comum que cada acontecimento seja analisado de maneira isolada ou apenas considerando a comoção de momento que leva a um engajamento que chamo de hashtag do dia nas redes sociais. Vamos então colocar esta limitação analítica de lado e observar mais atentamente os últimos 24 meses da América latina no campo de relações militares.

No início de 2022, o então ministro da Defesa colombiano, Diego Molano, iniciou uma verdadeira crise diplomática com a Venezuela e a Rússia, ao afirmar que o regime de Putin estaria operando equipamentos de espionagem no território venezuelano, praticando espionagem militar dos exércitos da Colômbia e do Brasil. Este fato fez com o que a diplomacia russa iniciasse uma série de declarações colocando em xeque a credibilidade do Ministro colombiano e, ao mesmo tempo, deixando na berlinda as relações com a Colômbia (vale ressaltar que estes fatos ocorreram pouco antes da invasão da Ucrânia). O Sr. Diego Molano então dobrou a aposta e declarou publicamente que, a partir da inteligência militar realizada pela Colômbia, teria sido possível identificar tropas com armas que estariam se mobilizando para áreas de fronteira com a Colômbia com o apoio do Irã e da Rússia na República Bolivariana da Venezuela. A embaixada russa rapidamente respondeu que o ministro estava emitindo acusações infundadas e procurando inimigos onde não havia.

O ministro Diego Molano novamente dobrou a aposta e divulgou para a imprensa, através do Jornal El Tiempo, detalhes do relatório de inteligência. Conforme o documento, sob a suposta missão de manter caças-bombardeiros que disparam mísseis anti-navio Kh-31, cerca de 68 membros do exército russo permaneciam na Venezuela e eram exonerados a cada três meses. O mais grave, porém, é de que estes militares não só estariam apoiando o regime de Maduro, como também estariam relacionados a alguns confrontos entre grupos armados na área de fronteira onde o ELN (guerrilha marxista e cartel de drogas) estaria tirando proveito da situação. O relatório indicava que a interceptação rádio eletrônica afetava também comunicações do exército brasileiro na Região. Coincidência maior foi que, diante dos fatos apresentados, Nicolás Maduro foi à televisão estatal da Venezuela ao lado do vice-primeiro-ministro russo Yuri Borisov assinar um acordo de cooperação militar com a Rússia, declarando todo o apoio contra o “ocidente nazifascista e imperialista”. Estes eventos aconteceram durante a viagem do ex-presidente Bolsonaro à Rússia, em fevereiro de 2022.

Após a eleição na Colômbia, o atual Presidente e ex-guerrilheiro, Gustavo Petro, vem participando de “negociações de paz” de paz com o ELN intermediadas por, veja só, Venezuela e Cuba.

No início deste ano, houve uma grande controvérsia envolvendo o exército brasileiro, que concedeu autorização para que navios de guerra iranianos atracassem no estado do Rio de Janeiro. Tamanha foi a controvérsia que, por algumas semanas, a operação foi adiada. Finalmente, em 26 de fevereiro, os navios atracaram e levou a uma enorme rusga diplomática do Brasil com os EUA e Israel. Fato ainda mais escandaloso, foram os relatos, em meio a crise diplomática, de que funcionários do Itamaraty e militares brasileiros teriam realizado uma festa com os iranianos que faziam parte da tripulação das embarcações, alusiva aos 120 anos das relações com a ditadura islâmica. Após sair do Brasil, o roteiro dos navios incluía a Venezuela e uma inédita passagem no Canal do Panamá. O diretor do Centro para uma Sociedade Livre e Segura, Joseph Humire, declarou em uma entrevista para o Jornal The Washington Free Beacon: “Isso é o que o Irã vem construindo na América Latina nos últimos 30 ou 40 anos, mediante o estabelecimento de embaixadas, acordos bilaterais e exercícios militares com aliados como Rússia, China e Venezuela, no Mar do Caribe”.

Neste ponto, voltamos a Nicarágua que, além da Rússia, também passou a aumentar os níveis de suas relações diplomáticas com o Irã. Segundo vazamentos do pentágono, divulgados pelo The New York Times neste mês de junho de 2023, a visita do ministro de Assuntos Exteriores do Irã, Hossein Amir-Abdoullahian à Nicarágua, ocorrida em abril, não foi somente para estreitamento de laços comerciais. O tema central da visita teria tido foco em fortalecer as cooperações militares entre os dois países.

Voltemos novamente à Venezuela. Após o reestabelecimento das relações com a Colômbia, o ditador Nicolás Maduro estaria coordenando um pedido de investigação dos generais do Exército Colombiano. A informação foi dada pelo ex-Presidente da Colômbia, Iván Duque, que também fez outra denúncia grave: o regime venezuelano teria interesses em conhecer a história da inteligência militar entre a Colômbia e os Estados Unidos. “A cooperação de inteligência entre Colômbia e Venezuela indica que há um interesse do regime venezuelano em conhecer o trabalho histórico da inteligência colombiana com os Estados Unidos, o Reino Unido e outros países. Já se sabe que, a pedido expresso de Nicolás Maduro na Colômbia, as investigações começam a ser abertas a generais que serviram o país e que enfrentaram terrorismo em nosso país e grupos terroristas que estão sendo protegidos por Maduro em território venezuelano”, disse o agora ex-presidente colombiano.

Além desta abertura e troca de informações sigilosas entre os ministérios da defesa da Venezuela e Colômbia, Nicolás Maduro está abrindo o mesmo canal de troca de informações com o Brasil. Durante sua controversa visita no início de junho, foi assinado, com Lula, documento composto de 55 itens. Um deles declara oficialmente que as agências de inteligência dos dois países estreitarão suas relações, chegando a compartilhar informações sigilosas, confira: “Ressaltaram a necessidade de aumentar a articulação dos órgãos de inteligência e fortalecer as redes informacionais desses países” — ponto 38 da Declaração Conjunta de Brasília entre o Presidente da República Federativa do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva e o Presidente da República Bolivariana da Venezuela, Nicolás Maduro Moros.

Tratando ainda das questões militares do Brasil, temos a recente visita de oficiais do exército de libertação popular da China. A visita fez parte da viagem de estudos estratégicos da NDU (Universidade de Defesa Nacional da China, na sigla em inglês) ao Brasil. Ao todo, foram 18 oficiais, sendo 17 deles generais, que passaram por Brasília e pela Escola Militar de Guerra no Rio de Janeiro.

Ainda na esfera de influência chinesa, temos a atual crise diplomática envolvendo Estados Unidos, China e Cuba, onde os asiáticos estão operando uma estação de espionagem na ilha caribenha. Além da estação de espionagem já confirmada oficialmente pela Casa Branca, existem fortes indícios de que o local também funcionaria como uma zona de treinamento militar, onde os oficiais chineses estariam oferecendo treinamentos não somente para o exército cubano.

Em meio a este contexto, temos na Bolívia o avanço de uma cooperação nuclear do país andino com a Rússia, operado através da estatal atômica russa Rosatom. A empresa afirmou  que concluiu a montagem de teste de um reator que operará no Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Tecnologia Nuclear (CIDTN) da Bolívia, informou a mídia estatal russa. O equipamento deve ser enviado à Bolívia para instalação ainda este ano. O reator, projetado para operar a uma altitude de mais de 4.000 metros acima do nível do mar em El Alto, departamento de La Paz, permitirá produzir radioisótopos para pesquisa em vários setores industriais bolivianos, disse Moscou. Para finalizar este artigo, não podemos deixar de relembrar os exercícios militares realizados em agosto de 2022, dentro do território venezuelano. Os chamados “jogos de guerra”, que contavam com a participação de Rússia, China e Irã, literalmente na fronteira do Brasil, que estava sendo espionado pela Venezuela com equipamentos e operadores russos, conforme a denúncia do ex-ministro da defesa colombiano.

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